sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Vacina anti-Aids avaliada na Tailândia precisa agora de ‘teste ocidental’

Especialista brasileiro diz que ‘sucesso mensurado’ é inédito.
Mas é preciso entender efeito imunológico e aplicar em outros contextos.

Até agora, a breve história da pesquisa da vacina contra o vírus da Aids é uma coleção de fiascos. O último malogro foi da Merck: o laboratório teve de admitir que sua vacina experimental anti-HIV, a V520, além de não impedir a infecção ou reduzir a carga viral, poderia aumentar as chances de contrair o vírus. Os testes clínicos foram suspensos em setembro de 2007.

O que surpreende nesse estudo é que duas vacinas sem eficácia individual, em combinação, apresentaram eficácia reduzida, mas mensurável. É inédito"

Há um ano, artigo na "Nature Biotechnology" (“HIV vaccine developers battle on, despite high-profile failures”) revelava os bastidores das pesquisas. Em 2006, o total aplicado pelo setor público americano nesses estudos era de US$ 833 milhões, comparados a US$ 79 milhões das empresas privadas. Entre 2005 e 2006, o financiamento público para esse campo de pesquisa havia crescido 23%. O particular, só 5%. A expectativa sobre os esforços da Sanofi-Aventis na Tailândia, cujos resultados foram divulgados nesta quinta-feira (24) não era nada positiva. “Muitos na comunidade (cientifica) a encaram como um provável fiasco”, dizia o texto, publicado em junho do ano passado. Ela já estava em plena fase 3 de testes (leia sobre a diferença entre as etapas abaixo).

Com o anúncio de hoje, a comunidade científica envolvida no desenvolvimento de uma vacina contra o HIV se alvoroçou, mesmo sem ter em mãos detalhes sobre o estudo. “O resultado é bem surpreendente”, diz o imunologista Edecio Cunha Neto, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e chefe do Laboratório de Imunologia Clínica e Alergia da instituição. “O que surpreende nesse estudo é que duas vacinas sem eficácia individual, em combinação, apresentaram eficácia reduzida, mas mensurável. É inédito.”



Grande contingente, 16.402 voluntários no caso da RV 144, é necessário para detectar efeitos muito pequenos de melhora

A RV 144, que baixou o risco de infecção em 31,2%, como anunciado hoje, combina uma vacina da VaxGen (de São Francisco, na Califórnia), feita com subunidades da glicoproteína gp120, da superfície do HIV, com a Alvac, feita com um vírus recombinante da “varíola dos canários” (similar à varíola, mas que infecta só aves e é inofensiva para humanos) que expressa três genes (env, gag e pro) do HIV. “O da VaxGen foi testado na Tailândia também, o resultado saiu em 2003, e ela não foi eficaz”, relembra Cunha Neto. “A Alvac já foi usada em testes menores, em um formato que conhecemos como vacina terapêutica, para pessoas que já estão infectadas, com o objetivo de melhorar sua imunidade de modo que não precisem mais tomar antirretrovirais. Mas ela também não teve sucesso.”

Questões não respondidas

O que está em discussão agora, na opinião do imunologista, é se o resultado vai se sustentar com análises clínicas mais aprofundadas. “É possível generalizar resultados para populações afetadas em outros lugares do mundo? O contexto tailandês, onde foi realizado o teste, é de populações rurais, onde a transmissão do HIV se dá entre heterossexuais, principalmente. Uma pergunta é como se comportaria em populações de risco no mundo ocidental.”

  • Aspas

    É possível generalizar resultados para populações afetadas em outros lugares do mundo? O contexto tailandês, onde foi realizado o teste, é de populações rurais, onde a transmissão do HIV se dá entre heterossexuais, principalmente"

“A comunidade está muito ansiosa para saber quais foram os mecanismos imunológicos que essa vacina provocou, associados a essa proteção de aquisição de infecção. Ela não causou alterações nas pessoas vacinadas e que acabaram infectadas. Não houve efeito quanto à intensidada da infecção, a carga viral. Resumindo: é uma surpresa muito boa, mas até que se possa dizer ‘nós temos um problema resolvido’, algumas questões têm de ser respondidas.”

Procedimento

Cunha Neto explicou que o anúncio do resultado sem a divulgação de um estudo detalhado não é fora de padrão. “No último ensaio de vacina, a da Merck, o procedimento foi assim também. Houve um comunicado para a imprensa e o envio de um pacote de dados inicial para alguns especialistas. Os trabalhos só vieram a ser publicados no final de 2008 na revista ‘Lancet’. É que esse tipo de resultado é esperado com tanta ansiedade que esperar um processo de publicação científica para liberar o trabalho demandaria um tempo muito longo. Quanto mais tempo você segura um resultado desse, que envolve milhares de pessoas envolvidas no protoolo, maior a chance de vazar de uma forma incompleta. Essa informação tem uma relevância sociológica, digamos assim.”

Fases

A vacina RV 144 estava cumprindo a fase 3. “Fase 3 é uma etapa do teste clínico em que você avalia 3 mil indivíduos ou mais de cada lado (o grupo que toma a vacina e o grupo que toma placebo). Isso é feito de modo duplo-cego, ou seja, nem o paciente nem a equipe sabem, para evitar qualquer viés”, explica Cunha Neto. “O grande contingente é necessário para detectar efeitos muito pequenos de melhora. A diferença (51 infectados entre os vacinados e 74 entre os não vacinados) de fato não é grande, mas extrapolando para milhões, perceba que o resultado já vale a pena”, afirma Cunha Neto.

É feito um acompanhamento periódico, que pode ser mensal, trimestral ou semestral, com visitas de profissionais e a realização de teste de HIV. O protocolo exige que os participantes sejam enfaticamente orientados a tomar precauções contra o vírus, fazendo sexo com preservativos, por exemplo. “É sempre junto com aconselhamento”, diz Cunha Neto. “Do contrário, seria antiético. Isso dá mais trabalho, porque exige inclusão maior de indivíduos na pesquisa. Todos os sujeitos são altamente incentivados a usar proteção.”

A diferença da fase 3 para as fases 1 e 2 é basicamente de número de participantes. Na 1, é testada a segurança (a toxicidade), para checar se há efeitos adversos graves, com 10 pacientes “de cada lado”. Além disso, ainda na fase 1, é verificada a imunogenicidade, a capacidade de fazer o sistema imunológico reagir. A fase 2 começa com dezenas de pessoas em cada lado e termina com cerca de 1,5 mil em cada grupo. “Custa de US$ 50 milhões a US$ 150 milhões tocar uma fase 3”, diz Cunha Neto. “Para fazer o acompanhamento, com as visitas, o custo é extremamente alto. A cada vez que você eleva o tamanho de um grupo, há uma elevação astronômica de investimento.”

Isso ajuda a explicar o envolvimento de pesquisadores das Forças Armadas americanas. “Eles têm recursos, pessoal qualificado e laboratórios, e são tradicionalmente fortes em desenvolvimento de vacinas”, diz Cunha Neto.

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